Trabalho

A vida nas ruas: preconceito e informalidade lado a lado em Niterói

Atualmente, 40,6% trabalhadores estão sem vínculo fixo

Trabalhadores ganham a vida como podem em sinais pela cidade.
Trabalhadores ganham a vida como podem em sinais pela cidade. |  Foto: Alex Ramos
  

O caso do vendedor de balas Hyago Macedo, morto nesta segunda (14) reacendeu o alerta para o crescimento do número de trabalhadores informais no Brasil. Isso porque de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos  12,4 milhões de desempregados, 40,6% vivem do trabalho sem carteira assinada. Apenas em Niterói, diversas pessoas, assim como a vítima, são flagradas diariamente trabalhando nas ruas da cidade. 

Na Rua Marechal Deodoro, por exemplo, o vendedor de aparelhos eletrônicos Wagner Luiz, 28 anos, lamentou a morte de Hyago e relatou trabalhar nas ruas há 10 anos.

 "Nós na rua temos a mesma rotina de qualquer trabalho, escutamos muita coisa, mas temos que ser profissionais. A diferença é que dependemos muito de Deus, porque tem dia que vende muito e outros que não vende nada", complementou Wagner.

Já próximo à Estação das Barcas, local onde houve a tragédia, o casal Thayane dos Santos, 28 anos e Matheus da Silva,19, eram amigos de Hyago e também vendem balas para sustentar a família. Os dois defenderam a vítima e contaram um pouco da rotina de trabalho na rua. 

"As pessoas veem a gente com a bala e às vezes atravessam a rua, parece que a gente é um alienígena, um nada, mas ainda assim eu uso a educação que eu nem sabia que eu tinha, falam as coisas ruins para gente, mas mesmo assim eu agradeço e mando a pessoa ir com Deus.", complementou Matheus.

Amigos do vendedor morto estiveram a com filha, de apenas 2 anos.
Amigos do vendedor morto estiveram a com filha, de apenas 2 anos. |  Foto: Alex Ramos
 

A jovem Thayane dos Santos relatou ainda as acusações de racismo que recebe frequentemente enquanto trabalha. 

"Já me chamaram de encardida, mandando eu tomar banho. Tem que ver como as madames olham pra gente. Somos humildes, nossa bala uma é R$ 3 e duas, R$ 5.  Trabalhamos na rua porque não tivemos oportunidade. E outra, na Bíblia não tá escrito que é proibido pedir, na Bíblia tá escrito que é proibido roubar", finalizou.

Outro vendedor, que trabalha no Centro da cidade, Cristiano Moraes, 44 anos, conta que começou a trabalhar nas rua devido à pandemia da Covid-19 e relata como lida com o tratamento, às vezes, preconceituosos por parte da população. 

 "Eu era camelô, mas na pandemia ficou difícil de trabalhar e eu precisava sustentar minha casa. Mas aqui lidamos com vários tipos de pessoas, tem dia que as pessoas saem zangadas de casa e desrespeitam a gente. Só que é aquilo, se brigar é pior, porque aí quem vem atrás já acha que a culpa é nossa e que somos mal educados, aí acontece igual ocorreu ontem, então é mais fácil entregar nas mãos de Deus", relatou.

 Uma outra vendedora de balas, Nilceia Souza, que trabalhava próximo ao Terminal Jõao Goulart, relatou trabalhar na rua há mais de 40 anos depois que perdeu o emprego. 

"Eu trabalho na rua para sustentar meus filhos, sou pai e mãe com muito orgulho. Mas eles gostam de nos discriminar por causa da nossa cor, tratam a gente igual bicho, uma vez falaram pra mim 'Ué a senhora vai pra rua arrumada'?", disse Nilceia.

Outro relato de preconceito parte da cadeirante, Marilene Rodrigues, de 57 anos, que vende doces para ajudar no sustento do filho que se encontra desempregado.

"Eu vendo minhas balas e trato  as pessoas bem, mas já ouvi muita ignorância, já me chamaram de aleijada, falam que se eu nasci assim foi porque Deus quis, é uma coisa pior que a outra, mas eu só agradeço e mando a pessoa ir com Deus. Todo mundo passa por dificuldade, mas precisamos ter coragem e força de vontade", relatou.

Marilene Rodrigues conta que gosta de se arrumar para trabalhar.
Marilene Rodrigues conta que gosta de se arrumar para trabalhar. |  Foto: Alex Ramos
  

Preconceito

De acordo com o sociólogo Rafael Mello, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a sociedade ainda enxerga a população de baixa renda com preconceito, onde o racismo se insere diretamente, devido à maioria das pessoas que sofre esse preconceito serem os negros (pretos e pardos), em sua maioria pobres.

"Por conta  de toda formação histórica do Brasil, ligada à escravidão, o preconceito de classe está muito ligado também a formação das sociedades modernas e à constituição do capitalismo. Ele surge com processos de reprodução social que criam mecanismos de perpetuação de controle e dominação por aqueles que tem privilégios e tem medo de os perder."

O sociólogo explica ainda que por isso é comum vermos pessoas que sofrem opressões sociais reproduzirem a prática com em uma classe diferente, como mulheres mais ricas em relação a mulheres mais pobres, negros mais ricos sobre negros mais pobres e assim sucessivamente. 

Em relação as possíveis soluções para amenizar o preconceito, o especialista relata a necessidade de implantação de novas políticas públicas.

"É preciso criar políticas públicas que visem o desenvolvimento da população mais marginalizada na sociedade, que são os mais pobres, e isso passa por uma melhor distribuição de renda, qualificação e oportunidade melhor de trabalho, uma tributação socialmente justa, garantias de direitos individuais e sociais elencados em nossa constituição, com um salário mínimo que atenda sua função social, além de ter campanhas de conscientização  e combate ao preconceito social, entre outras medidas, que podem amenizar o problema",  pontuou. 

Em relação as oportunidades de emprego, especialmente para ex-presidiários, o sociólogo chama a atenção para as dificuldade que possuem para ressurgirem na sociedade. 

"Mesmo que as pessoas se qualifiquem, fica sempre a mancha do crime que já cometeu. E mesmo essa mancha tem uma diferenciação de classe. Uma pessoa, que seja rica ou que tenha uma posição social mais privilegiada, não fica, ou fica menos, estigmatizada do que uma pessoa que já marginalizada por sua questão de classe, ou seja, a pessoa é marginalizada duas vezes."

Caso Hyago

As diferentes versões para o crime do vendedor de doces morto em frente à Estação das Barcas levanta questionamentos sobre as abordagens policiais e suas consequências.

Especialista em segurança pública, Paulo Storani esclarece que mediante à primeira versão da tentativa de assalto, mesmo de folga e devido ao ofício, o policial tem o dever de intervir, no entanto, o uso de força letal só se justifica na presença de uma iminente agressão, o que não foi o caso.

"Por mais que tivesse uma tentativa de assalto, o uso de arma letal é o último nível por parte de um agente de segurança. A ação foi além do necessário e consequentemente o policial vai ser responsabilizado, independente da causa. Muita das vezes o trabalhador tem um sofrimento por causa da sobrecarga de trabalho e quando falamos de sobrecarga é devido à alta demanda referente ao número de efetivos não compatíveis. Por isso dizemos que a polícia é uma instituição adoecida", relata.

Prefeitura de Niterói

Em outubro do ano passado, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos de Niterói realizou um curso de Inserção do Mundo do Trabalho, no auditório do Caminho Niemeyer. O curso fazia parte do projeto que integra o Programa Potência Negra, coordenado pela Subsecretaria de Promoção de Igualdade Racial (Supir) e teve como público alvo os alunos da rede pública de ensino que estavam no segundo ciclo do ensino fundamental e outras pessoas negras que estão desempregadas. 

O secretário de Direitos Humanos, Raphael Costa, destacou que é necessário criar oportunidades para este público.

Além disso, o secretário também informou ser necessário desenvolver políticas públicas que combatam esse problema, para criar pontes e oportunidades de geração de emprego e renda. 

Questionada, a Prefeitura informa que o cadastro de ambulantes é feito mediante edital público de convocação elaborado pela Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP). Ainda ressaltou que a cidade realiza, de acordo com a necessidade, o zoneamento urbano do comércio ambulante. O executivo comunicou que atualmente existem cerca de 300 licenças de ambulantes concedidas no Centro da cidade.

O executivo esclarece ainda que número de trabalhadores é determinado após o estudo de ruas e áreas em comum, obedecendo critérios que mantenham o ordenamento urbano. Mesmo com o cadastramento e legalização, a SEOP informou que continua a fiscalizar e coibir irregularidades como excesso de mercadorias, produtos supostamente falsificados, ambulantes não legalizados e obstáculos no passeio público. As ações, segundo informado, ocorrem semanalmente. 

De acordo com a Secretaria Municipal de Fazenda, para a legalização do MEI junto ao município, o solicitante deve possuir o alvará de funcionamento, que pode ser obtido na casa do empreendedor ou pelo e-mail [email protected].

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